A quarta chave

Que era feito da sua paixão?
Quando encontrava certas fotografias de anos longínquos, já não lamentava a antiguidade dos momentos, mas o facto de já não sentir saudade deles. A única coisa de que tinha saudades era, precisamente, de sentir – a excitação de conhecer um país novo, um novo amor, uma bebida desconhecida, a epifania mágica de ver a lua desfeita em águas trepidantes, e por aí vai. Sentia falta de algo que lhe assaltasse o corpo e o levasse para uma dimensão onde tudo fosse mais vivo, mais puro, mais em harmonia com o riso original das crianças. Em última instância, sentia falta de algo, nem que fosse a violência de um amor extinto.
Pois pior do que sofrer era estar anestesiado do sofrimento. Eduardo Sanfins atravessava as ruas amorfas da cidade, junto às montras sempriguais, e não tirava as mãos dos bolsos. Mesmo após ter reparado no reflexo esquálido, com o cabelo prestes a entrar nos seus olhos, e a barba mais desleixada do que era suposto num banqueiro de renome, permaneceu de mãos nos bolsos e não afastou o cabelo.
A Rua do Souto parecia-lhe ainda mais cinzenta, àquela hora tardia em que o sol é soprado pelos lábios de um deus frio. Nem o vermelho dos chupa-chupas sobrevivia, nem sequer a brancura artificial das rulotes – as cores começavam a desaparecer no buraco negro da noite, e os rostos diluíam-se em anónimas figurações a perder de vista.
Algures na Avenida Central, vinha-lhe o cheiro ao magusto e às castanhas assadas. O mesmo de sempre, pensava ele. Todos os anos passava ali, e algum comerciante rodava as acendalhas para vender a tradição de comer castanhas num cone de jornal. Dantes, parava para comprar um, e para sentir que estava a viver uma época diferente do ano. Mas todos os novembros eram iguais, assim como todas as tradições. As pessoas gostavam de preservar tradições, na tentativa de reviver o entusiasmo da primeira vez: celebravam, por exemplo, o Natal na esperança de se extasiarem com as árvores enfeitadas, as meias penduradas sobre a lareira, os doces que não se comia em mais nenhuma época do ano… O nascimento do Salvador. Mas assim que chegava o Natal, percebiam que não havia mais entusiasmo e que o mundo não estava salvo.
Eduardo Sanfins pensara nisto quando ignorou a voz da vendedora de castanhas, uma senhora engelhada para quem ele nem se dignou a virar o rosto. Só conseguia focar-se na voz monótona dos seus pensamentos, e em encolher os ombros para proteger o pescoço do vento. Tinha chovido o dia inteiro, e as meias encharcadas incomodavam-no a ponto de só desejar estar em casa.
Nunca mais chego ao carro, pensava ele.
Talvez seja isso, o envelhecimento. Ter dentro dos bolsos três chaves diferentes – a do carro, a de casa, e a do sítio onde se trabalha – e ir alternando entre elas consoante a hora do dia, resignadamente e sem escolha. Talvez haja uma quarta chave que nos leve para outro lugar, e que abra a porta que nos esteja destinada desde o início.
Mas há portas que não foram feitas para se abrir.

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