Migalhas

— Não sei o que dizer.
Não sei que caminhos cruzam o mistério do tempo, e a precariedade das certezas. Não sei que postura é capaz de travar o avanço das marés sobre alguns rostos erodidos, nem que lua irá resplandecer sobre esta noite tão infiltrada nos nossos corpos.
— Consegues perceber onde falhámos?
O que era suposto fazer para evitar o aparecimento das rugas, a degradação das praças, o lento esvaziamento de nomes que só a medo consigo pronunciar? Como desfazer a confusão criada no meu cérebro, com tantos nomes transformados em cinza e cidades povoadas por edifícios que não chegaram a ser?
— O trabalho mata tanto como a preguiça.
Confundi-me com a minha rotina. Cheguei a um ponto em que já não conheço os meus sonhos nem os meus desejos, e o meu melhor amigo é a estranha que me serve o café todos os dias. Contento-me com espaços circunscritos, trajetos curtos e momentos repetidos. A minha ambição é ter água a correr e uma lâmpada acesa. De tanto me habituar ao cerco da aridez, à sevícia do lucro, à convivência com charlatães e delatores, acabei por me esquecer daquilo que me fazia detestá-los. A liberdade está longe. Houve viagens desperdiçadas, e missões adiadas até à impossibilidade de as servir neste mundo de sal.
— Dá-me esse naco de pão, Joel. Estás há uma hora sem lhe tocar, completamente alheado nesse olhar perdido.
Estas foram as palavras secas da sua mãe enfermiça, que estivera, também ela, alheada no sofá fundo e gasto, esculpido pelo seu corpo fundo e gasto. Inicialmente, pensara que era uma voz da telenovela, ou uma frase brusca da publicidade, que se lhe dirigia. Mas era a mãe octogenária e cobiçada pelo faro atento da morte. Era só ele e ela. Naquela casa devassada por sombras e teias de aranha. Quem diria que um dia houvera risos entre aquelas paredes? O sol tinha dificuldade em embotá-las mais, e já não havia tinta que as refizesse. Era impossível camuflar o luto e o rumor do passado, o peso da ausência que pairava como um fumo em que se pudesse tocar.
— Tenho de ir, mãe. Fica lá com o pão.
E dito isto, despiu o pijama e vestiu à pressa um casaco qualquer, cheio de borboto. Não sabia dizer o motivo da pressa, nem para onde tinha de ir.

Mas foi.

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